sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Uma história - sem fim - do corpo

Nem tudo que se escreve em um relato de memórias deve ter, necessariamente, acontecido. Basta ser escrito de um modo bastante descritivo e de maneira tal que transcenda as verdades de quem escreve para quem lê.

Ao escrever uma narrativa sobre as situações que formataram o meu corpo – e sua/minha história – eu poderia contar alegres histórias sobre as brincadeiras que meus amigos e eu criávamos e recriávamos na rua lá de casa. Poderia contar-lhes do quanto eu gostava das aulas de Ballet e Ginástica Artística que eu frequentava desde os seis anos. Ou poderia narrar a minha alegria adolescente com a paquera dos colegas de escola na adolescência.

Mas a rua em que vivo desde que nasci é uma avenida bem no meio da cidade e eu não tinha vizinhos da minha idade para brincar lá fora. Eu nunca pude fazer aulas de Ballet ou Ginástica Artística porque sempre fui um tanto quanto descoordenada para dançar. E meus colegas da escola nunca me paqueraram.

Assim, aqui estou eu, deitada na minha cama, com fones de ouvido que ecoam tristes melodias do The Corrs, para lhes contar uma história, de fato, bem diferente das que eu gostaria. Desta vez, eu juro escrever apenas a verdade e nada mais que ela – as verdades que me formataram como sou. Aviso com antecedência. Minhas memórias não são alegres.

Até os quatro anos de idade eu era uma criança perfeitamente normal, dizem. Ninguém sabe explicar, entretanto, qual o motivo para eu ter começado a engordar, desde pequena. Claro que não me lembro do meu corpo, mas lembro-me dos prazeres que a confeitaria da família proporcionava a ele.

Lembro-me também de um dia cinzento. Acho que finas gotas de água caiam do céu. Havia um consultório com bichinhos de pelúcia e uma simpática doutora me aguardando com um sorriso. Fui diagnosticada como uma criança que não estava crescendo conforme os padrões, que precisava fazer acompanhamento para emagrecer a fim de acompanhar as curvas normais de crescimento.

Desde então minha existência foi destinada ao controle da minha anormalidade. Eu nunca fui capaz de escrever um diário de acontecimentos e sentimentos na minha vida, mas escrevi páginas sem fim de diários alimentares.

Nessas páginas registravam-se as inúmeras vezes em que, menina, deixei de ganhar os Tazoos do Fandangos para comer minha *deliciosa* maçã no lanche da escola. Ou as vezes em que os bolos de aniversário, os brigadeiros e os refrigerantes foram substituídos por peras e sucos de fruta.

Os diários só não tinham conhecimento das vezes em que eu quebrava as regras e me realizava com M&Ms, Diamantes Negros, Frutillys, Pitchulas e Cheetos. E, na próxima consulta, depois da pediatra descobrir que eu não havia emagrecido nada, saia chorando.

Minha mãe não me deixou fazer Ballet. Eu não poderia entrar num Collant. Eu nunca consegui dar estrelas nem fazer cambalhotas no ar. Recorri aos livros e ao piano. Passei horas de minha vida aprendendo com mulheres que não tinham corpo, não tinham peso e nem altura. Com melodias que não eram cantadas por mulheres perfeitas.

Assim cheguei, feliz e contente, aos doze anos. Nunca me trataram mal por não ser normal. Também não me trataram bem por isso. Eu sabia que os meninos da classe eram meus amigos porque eu explicava as matérias antes da prova, emprestava o caderno e servia de pombo-correio para seus recadinhos para as minhas lindas e perfeitas amigas normais. Isso não me incomodava. Até a sexta série.

Certa vez, numa aula de ciências, o professor explicava sobre os efeitos dos hormônios em nossos corpos púberes. Os meninos teriam ereções, as meninas menstruariam. Todos perceberiam novos odores, novos pelos. Todos cresceriam, teriam o “estirão” e seriam lindos adolescentes. Não todos, disse ele. Eu continuaria a crescer para os lados, e não para cima.

Algumas palavras provocam efeitos imediatos nas pessoas. Como eu me odeio por não respondido algo, por não ter criticado ou, no mínimo, contado para alguém mais velho. Mas não, eu ri da piada dele. Não só eu, claro, mas todos os colegas da 6º série C.

Mas as palavras, algumas vezes, demoram algum tempo para surtirem efeitos poderosos e gritarem dentro de um corpo por uma atitude.

O que mais eu poderia fazer? Eu era a anormal, a gorda nerd, a solitária amiga de todos.

Eu parei de comer. Eu emagreci. Perdi tantos quilos em seis meses quantos eu deveria ter perdido a vida inteira. Todos olhavam e me parabenizavam, como se perder 28kg e poder usar uma roupa P fosse a maior conquista na vida de uma pessoa. Elogiaram-me mais naquela época do que quando passei em um dos vestibulares mais concorridos do Brasil.

Mas ninguém via que eu tinha tonturas que me obrigavam a segurar portas, paredes e pessoas para não cair. Ninguém viu minhas torturantes dores de estômago. Nem as reclamações do meu corpo de jovem mulher. Viram meus pulsos finos, meu rosto reto, minhas pernas magras, a ausência de barriga. E me elogiaram por isso.

Essa é toda a verdade. Sinto dizer, também é uma história sem fim.

O progresso da Ciência

Era um dia como outro qualquer. O cheiro do café nos copos plásticos impregnava o ar. Todos chegavam, digitavam, criavam ideogramas, mediam, anotavam e sujavam seus guarda-pós – já não tão brancos quanto foram outrora.

Eu diria que o sol demorara a nascer naquele dia, mas de onde eu estava já não podia mais ver o sol. Eu sabia que era dia pelo (re)acontecer das mesmas coisas de todos os dias, dia após dia.

Um grupo chegou perto de mim falando alto e comentando sobre alguma coisa. Alguém me tocou com mais delicadeza do que eu esperava. Pude sentir o calor das mãos humanas através das luvas brancas que acariciavam meus pelos brancos.

Me colocaram em um lugar novo. Era frio lá. Senti um cheiro estranho, ácido, forte, estonteante, inebriante.

Perdi-me no escuro. Rubro, quente, desritmado nas batidas que não batiam mais.

Eu queria saber por que.

Por que não sei o que significa liberdade?

Por que os papais verdes não se transformaram em pedaços de queijo?

Agora um empregado filipino lava o chão. Talvez as partículas de pó também tenham memórias. Talvez alguém tenha dito alguma coisa sobre valer a pena. Talvez tenha sido decifrado um minúsculo caractere do livro da natureza. Talvez alguém tenha chegado mais perto de Deus.